terça-feira, 14 de abril de 2015

Ai, eu não poderia ser um ex-poeta, de Geraldino Brasil













Ai, eu não poderia ser um ex-poeta

Companheiro, não sou feliz. Entenda,
carrego o tempo em mim. Cada vez mais
deixei de ser sozinho eu mesmo como era.
As pessoas por fora não as vejo, só me lembrar
do seu sorriso. Agora nelas sei do velho tempo,
a natureza silenciosa, sua enorme carga de dor.

Ai meu sofrimento passageiro então,
simples dor de cabeça se jogava no colégio futebol.
Sentir a dor alheia? Eu tinha muito de frade,
vivia a minha vida.

Mas o tempo passou, sou outro. Não que tenha
ficado um santo bom. Até dirão que censurável,
os sólidos. Porque não penso mais,
como eles, no meu único amor. Outra
a noção de justiça. Agora me pergunto:
e aquelas a quem sinceramente amar?
É justo não dizer com o olhar a cada uma
que outro marido merecia?

Veja então
quanto mudei! Cresci! Já pensava que a grandeza
do coração era abrigar um só amor. Fui pequeno.

Aí está, companheiro, companheiro, me desnudo.
O homem é como está. Faz uma hora,
quem saberá como será daqui a meia?
O homem não é como uma pedra, que aqui e em Tóquio,
no seio da terra ou ao sol, é uma pedra.
Por exemplo: pensava no futuro
(que me cansou) de uma criança que sofria e que me fez chorar.
Em lágrimas me levantei, tomei meu vinho,
fui à janela e olhei para a estrela sozinha
− encontro dos olhares dos amantes separados –
que lindo! e me esqueci da pobre criança.

E a mulher? A mulher está acima da minha imaginação.
Há quem só saiba imaginar uma mulher no perfumado leito.
Ou na areia da praia, ao luar. Ou mais novo ainda
no celeiro das palhas do estábulo.
Mas eu, que sou sensível poeta lírico, penso também
na mulher que beijada pelo homem feio
− e digo os seus dois verbos femininos –
um homem que não o que ela adora mas o que odeia,
aquele de cara fechada que nem o amor sorri por ele.

Como você vê, não sou o homem que reduz o mundo
ao seu fim de semana e migalhas de pão
joga aos inocentes peixinhos do lago do parque.
Não alcancei ser um poeta épico
que já exaltou o mundo passado dos seus heróis
e em repouso poderá gozar a glória de ex-poeta.

Amo! e dessas fraquezas humanas não sabe um épico.
Não sabe o que é acreditar
nos vencidos sem domínio do amor
que muita vez seremos os vencedores
sem história, como o povo da canção que não morre
as suas fomes, infinito.
Porque eu creio em tudo. O meu verbo crer
é o meu verbo de duvidar. É a minha maneira
de acreditar. Se uma pessoa pede:
“Deus me levasse”, creio
(porque depois no consultório médico
vejo-a dizendo que perdeu seu apetite).
Creio no homem do cachorro, que ele gosta
dos outros, de receber suas visitas.

Creio no homem de esquerda que viaja
a passeio no avião do presidente capitalista. Creio
no hippie que se habilita à herança do pai burguês
que era um porco. Creio no olhar do general
que reza na catedral do domingo. Sou homem de crer.
Ninguém conte comigo para desconfiar.
Porque não desconfio dos outros que não conheço.
Não desconfio do engenheiro que há cem anos fez a ponte
por que atravesso o pedregoso rio.

Ai, não queria deixar de ser como estou,
carregador da minha esperança que se cansou de esperar!
E vou com os braços pra cima
tal quem leva um fardo de ar.
E pensam que fiquei doido:
− “Carrego minha esperança que se cansou de esperar!”
Deus nosso, cada vez a esperança fica mais cansada,
cada vez preciso de mais força para a carregar.
Às vezes estou desesperado e saio a procurar
algum amigo do deus mais poderoso
da crença da sua fé e peço pelo meu amor
porque o meu deus não me ouviu e não pôde fazer nada.

Uma vez me esgotei e fui dormir para sonhar.
Voltei do sono mais cansado ainda
de ver os reinos das bem–aventuranças
na busca desesperada ainda sem Deus,
pois tinham lido errado, porque “só os
puros de coração verão a Deus”,
poucos, está escrito no Sermão.

Quando voltei do sonho, que alívio!
Alívio digo comparando ao não descanso nunca
dos impuros de coração nos reinos
dos bem-aventurados. Seus fantasmas não dormem.
Quem diz, diante do que morreu:
“descansou, entregou sua alma a Deus”,
que ilusão, mas que ilusão!
Basta dizer que para um refrigério
há os que descem para cá, quase todos, a humana lida
é o nosso repouso até de novo a morte enganadora.

Como hei de terminar este poema?
Este poema que quer continuar falando danado?
Meus mestres sabem e não me ensinam;
não que não queiram, é que não podem
dizer ao outro o que é somente dele ou dela.

De modo, companheiro, porque não sei,
este poema não termina, ficará
como alguém que interrompeu uma conversa.
Digamos que morri ou que chegou a sua sogra
(a sua, porque a minha é uma segunda mãe, creia).
Nem posso me queixar. Veja que Deus,
insatisfeito no ato da criação
− imagine, Deus! –
Deus criou no mesmo dia a Lei da Evolução!

Isto é um poema lírico, companheiro,
e um poema lírico é um hoje, folha do tempo.
Compôs a árvore e já não a adorna,
já é folha que caiu, ao anoitecer.

Ele há de esperar a noite azulada
e do seu outono fértil renascer em outra folha nova,
amanhã, espero: até amanhã, companheiro.


(Do livro Não haverá o anoitecer, de 1991, p. 83-87.)

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