quarta-feira, 15 de abril de 2015

Os sapatos, de Maurício de Macedo









Os sapatos


Quando retornamos do cemitério,
os sapatos da morta repousavam
ainda vivos, sob a cama,
calados, acusando a sua ausência.

Eram dois pássaros imóveis
os sapatos da morta,
guardando a casa vazia
onde, vestida de silêncio,
a morta se refazia.

A morta se refazia naquela casa
(que, deixando de ser vida,
passava a ser memória)
na etérea linguagem das lembranças
— código de nuvens no céu das retinas.

Se refazia fluida
a morta naquela casa:
no espaço da sala
— de onde se afastara a mesa
para dar lugar ao esquife —,
nos quadros que pintara
— pendurados na parede —
no lustre, a pender do teto,
na luz da tarde,
a inaugurar a sua transfiguração...

Mas era nos sapatos
— testemunhas mudas —
onde sua falta mais clamava,
onde mais evidente se fazia
o espanto de sua partida,
rasgando no tempo
o espaço da leveza
que, a partir de então, percorreria.


(Do livro Onde a vida fere mais fundo, de 1999, p. 57.)

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