Os sapatos
Quando retornamos
do cemitério,
os sapatos da
morta repousavam
ainda vivos, sob a
cama,
calados, acusando
a sua ausência.
Eram dois pássaros
imóveis
os sapatos da
morta,
guardando a casa
vazia
onde, vestida de
silêncio,
a morta se
refazia.
A morta se refazia
naquela casa
(que, deixando de
ser vida,
passava a ser
memória)
na etérea
linguagem das lembranças
—
código de nuvens no céu das retinas.
Se
refazia fluida
a
morta naquela casa:
no
espaço da sala
— de
onde se afastara a mesa
para
dar lugar ao esquife —,
nos
quadros que pintara
—
pendurados na parede —
no
lustre, a pender do teto,
na
luz da tarde,
a
inaugurar a sua transfiguração...
Mas
era nos sapatos
—
testemunhas mudas —
onde
sua falta mais clamava,
onde
mais evidente se fazia
o
espanto de sua partida,
rasgando
no tempo
o
espaço da leveza
que,
a partir de então, percorreria.
(Do
livro Onde a vida fere mais fundo, de 1999, p. 57.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Gostou do poema ou da postagem? Deixe aqui sua opinião.