segunda-feira, 20 de abril de 2015

Didática do Real, de Bernardo de Mendonça



Didática do Real


1.

Para poucas verdades, muita vida:
mentir para mantê-las – entretidas.
Provar o limiar e o fim do enigma:
velar e desvelar, o nosso estigma.
Com deus ou sem deus é o que nos resta:
mentir cada vez mais sobre essa terra.
Mentir e desmentir, como saída:
para poucas verdades, longa vida.


2.

Estava escrito: o real não é o chão
mas a ilusão de ser real o chão;
a teia de razão que o faz prisão:
o chão não é real, o chão é além
do grande malogro que o detém:
se é falso o rei, falsos olhos vêem.
Nem é real a vida – já se sabe:
quanto mais real, menos vida cabe.


3.

Não é real a fera: a justa fúria
que, viva, entre feras, a mantém;
mas é real a fera que se enjaula
ao olhar que a possui como se fora
a súbita memória do que é fera:
apenas vida, lúcida na fúria.


4.

Arguta é a escolha do castigo:
a solidão aguda do proscrito.
O real simula unir o que é ilha:
torna insana a loucura e a exila.
O pânico do exílio é o artifício
com que o nome amplia seus desígnios.


5.

Proteja-se da vida com este olhar:
será real, por certo, o que encontrar.
Será real aquele olhar convicto
que não apenas vê – vela o revisto.
E tanto o real cresce e aparece,
dispensa-se de ver – previsto, crê-se.


6.

De olhar em olhar, o real se fia:
não só o que se espia – se entretece;
não só o que se expia – se obedece:
não por ver; por dever que não se esquece.
E, no entanto, também estava escrito:
quanto mais é real, mais é finito.


7.

E eis que este olhar tão realista
vai embora de ver como um turista:
quando olha a si mesmo como a foto
de um país estranho e remoto;
aquele que escapou por muito pouco
de ser outro ou outro ou outro ou
Aí se interrompe o caminho:
onde maior que o real é o ser sozinho.


8.

Como uma ponte o real se atravessa
mas não se sabe o vão onde começa.
Pois se seu reino acaba, que acontece?
Nada que aos astros interesse.
Já no espaço sequinte, tudo é onde
ora a luz se avista, ora se esconde
do ânimo da vida e sua sina:
a fome e não a ponte é que a destina.


9.

Onde estão a colher o mesmo grão,
o lavrador, a praga e o patrão?
Onde estão a colher a mesma espiga,
o bêbado, o ladrão e a formiga?
Onde estão a colher a mesma fruta,
as mãos de sua mãe, a virgem e a puta?
Porque não há silêncio, haja fala:
a máquina da cólera não pára.


10.

Não é real a luta e sim o ato
de torná-la um trato, um teatro.
A luta não é isso: este vício
de adiar o corte, o desfecho;
mas é real o tédio da astúcia:
desinventar a morte, matar muito.


11.

Não nos pesa o fardo do morto
desde que morto apenas um pouco:
em fúria muda, imóvel luta,
perdura o drama, finda a disputa:
mínima morte, lance de olho –
que o próprio morto arraste seu corpo;
desde que morto, persista em cena:
pequeno assassino, morte pequena.


12.

Sabemos que é fatal este teatro:
sabemos que há malícia neste pacto.
Sabemos da tocaia, da armadilha,
sabemos da couraça, da armadura.
Sabemos que o espetáculo é antigo
e que, enfim, a cena é dos vivos.
Sabemos que é sem fim o palco:
quanto mais íntimo, mais teatro.


13.

Pois seja outra mentira este invento:
que não sendo verdade, seja tempo.
E seja um tempo tal que o desminta
tudo o que é real ou o consinta.
Que seja este tempo a descostura
do instante que tece a usura.
Que seja esta mentira menor mal
do que acordar sonhando-se real.



(Do livro Legendas para Cem Fotos Imaginárias, de 1989. Fonte: https://acervodagraphia.wordpress.com/category/bernardo-de-mendonca/ .)  

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