domingo, 12 de abril de 2015

Nesta calçada, de Sidney Wanderley


Nesta calçada


piso
nesta calçada
em que outrora tantos outros trafegaram
os que ainda respiram, os que já se foram
os que neste momento agonizam e se encolhem
no estreito espaço que separa a vida e a morte

piso
sobre as marcas indeléveis e invisíveis
das passadas de humanos que ignoro
e no entanto, como eu, aqui passaram;
das passadas de um menino que já fui
há quinze anos correndo sobre esta mesma calçada:
os passos lépidos, os pés diminutos, sorriso nas faces
sem marcas de dissabores, madureza, sofrimentos
e um sol morno em meus olhos , em meu dorso

piso
nesta calçada
e com a sola gasta dos sapatos
nela escrevo uma palavra: VIDA,
como poderia ter escrito SANGUE
            FÊMEA          BLUSA
                   ÂMBAR
            ou até meso KXPTY,
fosse eu abstrato e concretista,
mas VIDA é o que, por ora, bate fundo nas retinas
como botas militares marchando por sobre o asfalto

por sobre a calçada
piso
piso e me arguo
de nós dois qual aquele que mudou:
se o poeta? se a calçada?
e uma brisa discreta que eriça meus pelos
e refresca meu corpo
sussurra-me — como Heráclito —
que não se adentra, que não se caminha duas vezes
o mesmo rio, pela mesma calçada

piso
como se fosse o último sobrevivente de minha espécie
passeando sobre a calçada única do Universo
e entanto sei-me igual a tantos outros:
duas pernas, muitos passos, um caminho
e sei — talvez bem mais que os outros —
ser esta calçada em que minha sombra se projeta
nada mais que discreta notícia, infindo rol
de incontáveis viventes que por aqui passaram

piso
por isto piso assim
nesta calçada:
tão senhor dela
e de mim.


(Do livro Nesta Calçada, de 1995, p. 46-47.)

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